segunda-feira, 16 de maio de 2016

Sem esconder o jogo

Assim que vi aquele homem alto, falando alto no balcão do bar, logo de cara vi que não conhecia, chegou ao bar sozinho, desacompanhado, um pouco depois que cheguei. De imediato pensei comigo mesmo, preciso tomar cuidado, não permitir meus preconceitos depreciá-lo além da conta. Esse é o perigo de todo preconceito, quando, basta parecer, lembrar ou soar um pouco com determinado perfil, para condenarmos implacavelmente alguém, já é suficiente para metê-lo dentro daquelas coordenadas, naquela forma, naquela camisa de força da ideia preconcebida. É muito cruel e injusto, principalmente quando pensamos, que na maioria das vezes nem conhecemos suficientemente o personagem, nem sabemos como realmente é.
No caso agora em questão, o nosso personagem é mulato, 39 anos, diz ter um metro e oitenta e três, altura que o fez jogar na zaga em times de futebol amador, quando mais jovem. Ainda não sei o nome, ou esqueci completamente, de fato tenho algumas dificuldades em memorizar nomes próprios. Se fosse possível voltar no tempo, ao subúrbio do Rio dos anos sessenta e setenta, em vez de mulato, poderia escrever em seu perfil, escuro ou escurinho. Fala que é pai de seis filhos, os quatro últimos com a última mulher, de quem está se separando, apesar de continuar morando na mesma casa, com separação de corpos. Diz que já está procurando casa. Na mesma hora, vira-se em minha direção, e pergunta se sei de alguma quitinete para alugar, quando mal tinha me visto no pedaço, como se estivesse querendo puxar assunto, trazer-me para a conversa, inserir-me no papo. Respondo apenas com um “não sei”, sem demonstrar antipatia. Continua a contar a vida, fala em planos para o futuro, fala sobre tudo, fala muito, fala alto, sua voz é um pouco estridente, e algumas vezes irritante, gera no ambiente um certo mal-estar, mas ninguém reage, protesta ou se manifesta, há um clima indefinido, um grito parado no ar, o que indica, que qualquer coisa pode rolar.
Depois que conseguiu se impor pela fala, de certa forma adquiriu autoconfiança, a ponto de continuar a falar de si, sem demonstrar a menor preocupação se aquilo estava ou não enchendo o saco de alguém. Como se tornou mais natural, a tensão inicial se dissipou um pouco. Antes de se afastar em direção à toalete, pensei que estava indo embora, pois seu movimento dava indicações claras, que estivesse partindo. Colocou uma frase em tom de despedida, como se estivesse concluindo um raciocínio complicado, aproximou-se o mais que pode dos outros interlocutores, abaixa um pouco o tom de voz, e diz: "talvez tenha mais alguns filhos por aí, não tenho certeza, apenas desconfio"; em seguida se afasta rápido em direção ao sanitário.

É muito difícil estabelecer a fronteira precisa entre o preconceito e a realidade concreta do outro, da outra vida. É difícil saber, principalmente diante de um excesso de verbalidade, que por sua vez, manifesta e revela alguma coisa. No caso de nosso personagem, tudo leva a crer, que a intenção de todo o falatório, seria criar uma cortina de fumaça, para camuflar ou esconder algo. Embora tenha dito, que era trabalhador, não lembro mais do ofício, algo entre loja de lingerie ou trabalhador de obra, mas depois que vi a palma da mão aberta, descartei a opção pedreiro. Falando, lembra uma espécie de malandro, cópia serrana do modelo carioca do malandro bandido. Aquele tipo de elemento de quem se espera alguma coisa, não se sabe o que ainda, mas é bom ficar ligado, porque de gente, como o próprio, pode-se esperar qualquer coisa, até mesmo o pior. Com ou sem preconceito, é visível, que não inspira confiança. Quando morava no Rio, conheci umas meninas que curtia esse tipo de homem, o chamado amor bandido, mesmo que não fosse bandido, nem precisava ser, bastava parecer, para as gurias gamarem, sentirem um puta tesão.
O uso que faz de algumas gírias, a ênfase maior em algumas sílabas, a cantiga da fala característica, a ostentação da esperteza, como algo fundamental na autoafirmação. Um marketing de si mesmo permanente. Era visível e evidente a sua querência, estava em busca de, ou procurando algo. Como resolvi partir ao chegar ao meu limite, limite de tudo, até de cerveja, não tive como testemunhar o desfecho, como foi o final daquela noite.    

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