segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A loucura no horizonte social



Lembro que no início dos oitenta, quando a Anti-psiquiatria estava no auge, pelo menos aqui pelos trópicos, era comum escutar nesse meio, da parte de gente interessada nessa corrente anti-psiquiátrica, uma anedota muito corrente. Dizia-se, que deveria-se evitar de todas as formas, qualquer tipo de viagem através da loucura, tipo Mary Barnes, devia-se fazer de tudo, psicoterapia e o escambau para não entrar nessa, que era uma roubada. Se em último caso, não tivesse jeito, o sujeito vacilasse e perdesse as estribeiras, que pelo menos enlouquecesse apenas na esfera da instituição psiquiátrica, mas jamais socialmente. Em suma era um: “enlouqueça mas não bandeire socialmente”. E é curioso, porque mesmo a anedota tendo partido de adeptos da Anti-psiquiatria, era certo que não partira da liderança intelectual do movimento, pelo menos de suas duas principais cabeças, Ronald Laing e David Cooper, que não tinham nada a ver com essa frase, anedota ou postura. Porque se bem me lembro, era o momento para enlouquecer mesmo em nosso país, não se podia fazer política por causa do regime de força da ditadura militar, de sorte que sobrava poucas alternativas na órbita cultural e de engajamento político. Falava-se que o resultado da repressão do regime contra a população, era o desbunde da porra-louquice, a adesão ou cooptação do "Brasil ame-o ou deixe-o", ou a ruptura psicótica. Muita gente boa estava embarcando nas viagens de ácido lisérgico, o LSD, e o movimento do grupo liderado pela “Philadelfia Association” londrina era aparentemente um movimento libertário, dava ares de libertário, porque foi o movimento que começou a ecoar pela primeira vez o discurso dos direitos dos loucos, que deveriam receber um tratamento mais humanitário, mais justo e cidadão do que vinham recebendo até então em todos os asilos e instituições mundo afora, lutavam enfim por todas essas causas. Fazendo uma política setorizada, a exigir mais poder para os doentes mentais, até mesmo questionando a legitimidade do encarceramento dos loucos, como até então vinha acontecendo por toda a parte. A própria Mary Barnes, que foi celebrizada mundo afora através do seu livro: “Viagem através da Loucura” escrito em coautoria com o seu psicoterapeuta Joseph Berke, foi paciente do grupo de psicoterapia da Philadelfia Association londrina mesmo sendo americana, o próprio psicoterapeuta dela o Dr. Joseph Berke também era norte americano. A Anti-psiquiatria foi muito influente em solo americano, com o seu viés existencialista sartriano do "Ser e o Nada", sobretudo na psicoterapia, apesar de na época ter conhecido gente, que considerava Sartre um psicólogo de meia tigela, nunca diziam porque, mas enfim eram os comentários depreciativos desse tipo proferidos por quem era contra o movimento. A Anti-psiquiatria chegou a influenciar até filmes de Hollywood, como é o caso do filme "O Estranho no Ninho" protagonizado por Jack Nicholson por exemplo. De modo que naquele momento a loucura estava muito em voga, ou pelo menos passou a ser mais falada, muito mais comentada do que antes. Se as pessoas estavam pirando bem mais ou bem menos não era esse o ponto, falava-se muito sobre loucura, e assistia-se efetivamente gente entrando em ruptura psicótica, saindo ou entrando em órbita, quem não teve algum vizinho que tivesse pirado? Atribuía-se muitas vezes a influência da maconha ou Cannabis, enlouqueceu porque fumou muita maconha e não segurou a onda, era comum se ouvir. E quando disse que achei curioso, é porque o foco estava em cima da loucura, dos distúrbios mentais, era uma corrente alternativa para o tratamento psiquiátrico, e como eram o oposto do oposto, o avesso do avesso do movimento psiquiátrico oficial, do stablishment médico da época, era natural que se ocupassem mais com a parte clínica, e assim não sobrasse quase tempo para uma reflexão mais intensa sobre o social, embora fossem capazes de fazê-lo caso tivessem tido mais tempo de vida, como é o caso de Laing por exemplo, que era um cientista sério e que morreu com pouco mais de cinquenta anos de ataque cardíaco, apesar de todos os seus testes de ácido, que gostava de fazer regularmente. E não estava absolutamente em pauta esconder nada da sociedade, muito menos a loucura, que quando se manifestava não tinha como escondê-la de forma nenhuma, não tinha como, e esse não era para um movimento libertário, como era a corrente anti-psiquiátrica, capitaneada pela instituição de ensino e pesquisa a Philadelfia Association, com sede em Londres, ter como objetivo procurar camuflar, esconder ou escamotear da sociedade um fenômeno como a loucura. Aliás, muito pelo contrário, como bom movimento Psi com forte presença no tratamento de distúrbios mentais e outros mais leves, alguns tratados até mesmo com o auxílio e uso de substâncias alucinógenas, como a radical narcoterapia, queriam e desejavam que seus membros assumissem cada vez mais através de diversas formas de "outing", todos os conteúdos apreendidos através das experiências vivenciadas nos diversos e diferentes tratamentos empreendidos.

domingo, 25 de dezembro de 2016

O combate teórico contra o estruturalismo pós-moderno


Nunca é demais disponibilizar e exibir um trecho da página 125, capítulo dois do genial livro de Fredric Jameson, O inconsciente político (a narrativa como ato socialmente simbólico), que considero bastante ilustrativo do título acima como segue:

“(...) uma crítica dialética das categorias da semiótica e do método narrativo deve historicizar essas categorias relacionando o que são aparentemente apenas questões e dilemas de metodologia com toda a atual crítica filosófica do sujeito, como ela parte de Lacan, Freud e Nietzsche e se desenvolve no pós-estruturalismo. Esses textos filosóficos, com seus ataques ao humanismo (Althusser), sua celebração do “fim do Homem” (Foucault), seus ideais de dissémination ou derive (Derrida, Lyotard), sua valorização da escrita esquizofrênica e da experiência esquizofrênica (Deleuze), podem, no presente contexto, ser tomados como sintomas ou testemunhos de uma modificação da experiência do sujeito no capitalismo de consumo ou do monopólio tardio: uma experiência que é evidentemente capaz de acomodar um sentido muito mais amplo de dispersão psíquica, fragmentação, quedas de “niveau”, fantasia e dimensões projetivas, sensações alucinógenas e descontinuidades temporais, que, digamos, os vitorianos podiam reconhecer. De um ponto de vista marxista, essa experiência de descentramento do sujeito e as teorias, predominantemente psicanalíticas, que foram elaboradas para mapeá-lo devem ser vistas como sinais da dissolução de uma ideologia essencialmente burguesa do sujeito e da unidade ou identidade psíquica (o que era chamado de “individualismo burguês”); mas podemos admitir o valor descritivo da crítica pós-estruturalista do “sujeito” sem necessariamente endossar o ideal esquizofrênico que ela tende a projetar. Para o marxismo, na verdade, apenas o surgimento de um mundo social pós-individualista, só a reinvenção do coletivo e do associativo podem conseguir de maneira concreta a “descentralização” do sujeito individual exigida por esses diagnósticos; somente uma forma nova e original da vida social coletiva pode suplantar o isolamento e a autonomia monádica dos antigos sujeitos burgueses de tal forma que a consciência individual possa ser vivida – e não apenas teorizada – como “efeito de estrutura” (Lacan).

Assunto conexo: O sentido da crítica cultural

domingo, 20 de novembro de 2016

Absolvição do pensamento



O sujeito chegou ao bar do clube inflamado, alterado, como se tivesse conquistado algo, como se tivesse feito um golaço, falava em tom de celebração tal o entusiasmo manifesto. O que levou os presentes a criar uma certa expectativa ansiosa, de repente todo mundo queria saber o que tinha deixado aquele sujeito em tal estado, o que o tinha abalado tanto. Foi quando confessou, que estava feliz até aquele momento, após ter sido tocado profundamente pela fala de um tele padre, que o levara às lagrimas, o emocionara profundamente. Em seguida emendou um discurso elogioso das emoções fortes, quando somos tocados por algo, não importa o que, e ficamos mexidos e tocados, que era muito bom passar por aquilo, e hoje isso tinha acabado de acontecer com ele. Considerou ser uma espécie de milagre passar por momentos como aquele, e continuou por esse caminho, no elogio das emoções e do emocionar-se, como se o fato de alguém poder passar por tal descarrego emocional, fosse motivo de comemoração. Como se o fator emocional não fosse uma experiência corriqueira e banal, que acontece a toda a hora e a toda a gente. Emocionar-se é simples e fácil, difícil é refletir e pensar. Noto que é difícil até mesmo compreender do que se trata, o exercício do pensar, o que é a atividade reflexiva. Há uma grande confusão a esse respeito entre a maioria da população. Perdemos em parte a prática de pôr “em questão” as coisas, de vez em quando, como tão bem se gostava de fazer nos anos setenta. Observo uma preponderância de um tipo de gente, para quem ‘pensar’ é um estorvo, tornou-se algo negativo, da ordem do pensamento depressivo. Algo repetitivo, torturante e patológico. Existe até uma corrente mística de inspiração indiana, me escapa o nome agora, que prega abertamente o esvaziamento total da mente, e como consequência a sua total paralisação, deixando o corpo completamente livre para curtir os sentidos e os sentimentos, que estiverem fluindo exatamente no momento. Por essas e outras, que hoje em dia tanta gente boa não tenha em boa conta a atividade da reflexão e do pensamento, infelizmente. Por isso é vital a necessidade de partir logo para um movimento de absolvição do pensamento e da reflexão, tirá-los dessa condenação burra. Porque ser movido apenas pelas emoções, é se submeter a uma limitação muito grande, é um empobrecimento mental. Como é bom ser capaz de pensar antes de dizer certas coisas, como é bom pensar num projeto, arquiteta-lo, criá-lo e reinventá-lo. O pensamento é o nosso maior aliado, sobretudo quando precisamos lidar e conviver com o outro, quando não funciona ficamos à mercê dos erros, corremos o risco de um naufrágio total, podemos sucumbir e até mesmo perder a vida.
   

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Uma mente mais simples



Em geral uma mente mais simples, é mais fácil ser levada a acreditar na primeira hipótese, como razão de ser de um fenômeno qualquer. As coisas acontecem, mesmo que aparentemente apresentem uma causa mais determinante para a sua efetividade, tem também uma série de outros fatores ou causas como origem, causas menores evidentemente, mas que também tem influência no episódio, no acontecido. Por não está habituada a exigir mais da sua própria mente em voos mais ousados, uma mente mais simples acredita de cara na primeira causa, que lhe dão como razão de ser e pronto. Não acostumou o cérebro ao exercício diário de questionar aquilo que recebe e observa no mundo cotidiano, aceita quase tudo como verdadeiro, não sabe o que é ceticismo, não duvida de nada, e por acreditar em quase tudo, acabou tornando-se um crente, não no sentido restrito da palavra, mas no sentido lato, aquele que acredita. Tudo isso, a ponto dos mais maliciosos, considera-los ingênuos, ou naîves para os mais intelectualizados. Uma mente em tal estado, torna-se muito mais vulnerável aos aproveitadores, seja que aproveitador for, desde um político de plantão até mesmo um pastor picareta de ocasião, os chamados falsos profetas. Tornam-se vítimas enganadas e manipuladas com muita facilidade, quase uma massa de manobra, uma manada. Em tudo que ali se planta, floresce, cresce e esparrama-se para tudo que é lado, até mesmo um preconceitozinho qualquer. Hoje isso, amanhã planta-se aquilo, e assim vai se espalhando a plantação dos preconceitos, que vai cultivando e a proliferar terra a dentro, no afã de querer logo ser safra a ser colhida, para entrar no mercado. É triste constatar essa situação, mas tem sido assim, que as coisas têm se passado ultimamente. A gente mais simples tem sido manipulada, por grupos mal intencionados, seja de que interesse for, esse ou aquele, como campo fértil propenso a espalhar e reforçar determinados preconceitos, ali planta-se o veneno, que floresce e prospera, e em seguida faz um mal danado, não só ao alvo a ser atingido, mas ao próprio hospedeiro eventual do preconceito, que em vez de estar a aproveitar a vida da melhor maneira possível, está a perder tempo perseguindo membros de grupos discriminados e atacados pelos setores mais conservadores da sociedade. Estão portanto a serviço de, sem ter noção nenhuma do fato, sem consciência. Tem sido observado ultimamente, não apenas em terras sul-americanas, certos grupos de interesses na busca por legitimar algumas práticas antipopulares, utilizando-se dessa ferramenta de manipulação de massa, e depois do serviço feito e realizado, é feita uma pesquisa tipo ibope, algo plebiscitário, para justificar e legitimar algo, que de outro modo desagradaria em massa. É o chamado mau uso do vocábulo democracia. Portanto, é bom estar ligado.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Absolvição ou demonização? Eis a questão

Fico triste as vezes, quando ouço ou vejo um jovem ainda nos seus vinte e poucos anos, se pôr a demonizar gays, maconha, o aborto ou seja lá o que for. Está havendo um retrocesso conservador no país, depois de um relativo rápido avanço nos últimos quinze anos. É visível como a narrativa evangélica, e toda a sua ladainha, tem servido para alavancar a candidatura de pseudo-pastores, pseudo porque em sua grande maioria jamais estudaram teologia, não têm preparo intelectual nenhum. Pois bem, muitos desses picaretas estão hoje deputados federais, caíram de paraquedas na Câmara dos Deputados em Brasília, no Congresso Nacional, viraram congressistas da noite para o dia. É fato também, que já existia uma bancada evangélica no Congresso, mas não passava de uma minoria, que era até certo ponto, bastante folclorizada pela imprensa da época. Hoje em dia não, eles são quase hegemônicos, mas não estão sós nessa cruzada conservadora que assola o país ultimamente, contagiando e contaminando a tudo e a todos, tem as bancadas de todos os bês da República, é ‘b’ isso, ‘b’ aquilo, tem boi, bíblia, bala, banca, e vai por aí a fora. A pauta dessa gente é a pior possível, em termos da redução de direitos, e o pior, de direitos já conquistados e assegurados pela Carta Magna, que é a Constituição Federal de 1988. Portanto a agenda dessa gente é só retrocesso na questão de direitos civis e cidadania das populações minoritárias, sujeitas a preconceitos e bullying. Não se dando por satisfeitos nessa perseguição, agora querem por que querem a total criminalização contra todos os movimentos de emancipação e libertação da camisa de força dos adeptos da chamada normalidade padrão, de um sistema social injusto, excludente, favorável apenas aos senhores e ao status quo. Agora o alvo dos ataques tem sido com frequência os gays e todas os grupos organizados, que lutam por mais direitos, como é o caso do movimento de libertação do mundo homo afetivo ou outros do movimento LGBT, que hoje são não só apenas demonizados em discursos inflamados, francos e abertos na Câmara de Deputados, com a tevê pública transmitindo ao vivo para todo o país, jogando toda a população contra tal grupo perseguido, mas sobretudo criminalizado. O que é terrível, porque é como se estivéssemos voltando aos anos sessenta do século passado. E o grupo LGBT não foi escolhido por acaso, como se fosse num sorteio maldito, não, é algo deliberado, porque significativo e simbólico, os gays representam tudo, que desejam reprimir com a bíblia deles, nada de gente feliz, bem transada e resolvida sexualmente, quanto mais se reprimir a sexualidade de todo mundo, melhor será feito o controle social, econômico e político. Viver dentro de religião, qualquer uma que seja, é sempre viver em manada, como se cordeiro fosse, sob a tutela dos pastores, não pode jamais ousar jogar água fora da banheira, tem que andar na linha, não pode isso, não pode aquilo. Pura repressão. Todo mundo faz apenas o que reza a cartilha do pastor de almas de plantão. Portanto, escreveu não leu o pau comeu. É verdade, não é mole não.

E os gays ameaçam com o seu comportamento desviante, fora da norma e do padrão vigente e estabelecido, apesar de muitos de seus membros, além de gays serem também cidadãos sérios, completamente inseridos socialmente, criativos, produtivos, inteligentes, sociáveis e estáveis emocionalmente. Não importa, anátema em todos eles, dizem certos setores contrários a aceitação e tolerância ao desviante, que veem como transgressores, com condenação absoluta aos infernos no dia do juízo final. Quando disse no início, que fico triste quando presencio e sou testemunha de certos comportamentos demonizantes contra grupos minoritários, dói o coração, porque sinto que esse conservadorismo está chegando na ponta, no sujeito simples, no pai de família, que toma uma cervejinha no bar da esquina, e repassa, replica o preconceito disseminado pela mídia. Uma pena que isso esteja acontecendo em nosso país, um país ainda com um déficit de cidadania clamoroso, que precisa mais do que os outros avançar ainda muito mais, em busca de conquistar e ampliar mais direitos civis para todos, incluindo mais e não o contrário, todos os demais grupos minoritários e discriminados da sociedade.  

terça-feira, 12 de julho de 2016

Savoir faire


É difícil entender como se dá certos processos na vida do dia a dia, como se constitui, como é a sua maturação, a sua “démarche” como gostam de dizer os franceses. Há momentos em que procura-se fazer a coisa certa, e não se consegue obter o resultado esperado, e em outros acontece exatamente o contrário. Como na vida vive-se entre erros e acertos sempre, é melhor e mais seguro não apostar todas as fichas só no imponderável, é mais seguro e prudente procurar se preparar da melhor forma possível, criar as condições ideais para buscar alcançar determinado objetivo, mesmo que não tenhamos o sucesso esperado. Não tem importância, quando o sucesso não pinta, deixa-se para uma segunda vez, para a próxima chance. Também não temos nenhum controle, quando as chances aparecem, as chamadas “oportunidades”, que poderão ser bem aproveitadas ou não. É verdade, que alguns indivíduos têm aquilo que os experts chamam de senso de oportunidade, os mais hábeis quase não perdem uma chance, é o caso de alguns craques de futebol diante do gol. Como não tenho como saber de imediato, a razão porque acontece determinada coisa, criei uma estratégia, que por enquanto tem dado certo, adio a solução da equação e atribuo toda a responsabilidade pelo episódio à força misteriosa, àquilo que chamo de magia. Por enquanto tem dado certo, e quando não encontro uma explicação razoável para algo inusitado, não esperado nem desejado, que tenha acontecido, e que ainda não consiga ter acesso a compreensão e entendimento do fenômeno, chamo de magia. Nesse caso jogo um monte de coisas inexplicadas no mesmo balaio, jogo quase tudo, muita coisa, desde pequenas manifestações de vida não programadas e portanto inusitadas, o desdobramento de algo muito longe do esperado, mas que acontece, surge de repente, aparece na sua frente, como se tivesse caído de paraquedas, de bandeja. Não tinha pensado naquilo, não havia programado nem desejado, e mesmo assim aconteceu. À primeira vista não sabemos porque, não temos como saber a respeito de muita coisa que acontece. Afinal de contas, precisamos algumas vezes, pelo menos, ter a honestidade em reconhecer, que não podemos saber tudo, é impossível, não tem como.    

sábado, 18 de junho de 2016

Pausa para um jejum

Brockwell Park, Londres


O fato de não ter escrito nem publicado nada nos últimos dias, obriga-me, de certa forma, comparecer ao blog, dar uma justificativa aos leitores, alguém pode ter procurado por novidades, e não encontrando, se perguntado sobre a ausência. Tenho me ocupado mais nas duas últimas semanas, com a releitura e digitação de textos bem antigos, coisas do período londrino, portanto com mais de trinta anos de escritos.Tudo motivado por uma sugestão de um leitor, que ao ler o post “O velho Brixton está desaparecendo”, perguntou, por que não dar prosseguimento, com outros episódios ocorridos no mesmo período? Só a digitação me deixou ocupado por duas semanas, mas ao mesmo tempo, foi prazeroso fazer, quer dizer, está sendo, já que ainda não acabei. Falta fazer a edição final, mais acabada e mais aprimorada. Dei uma pausa, porque não sei ainda onde parar, interromper a narrativa, colocar um fim, um ponto final no texto. Não decidi ainda se deixo apenas o período londrino num texto específico, que por sua vez, são quase cem laudas do papel A4, ou se vou adiante, aonde incluiria anotações da passagem  por Amsterdam, Stuttgart, Berlim, Hamburgo e Bremen, lugares onde continuei a fazer anotações de algumas coisas. Daí a dúvida onde interromper o primeiro relato. Estou determinado a interromper e fechar o texto no dia em que deixo Londres, e quanto aos textos seguintes, já que a viagem continua, estou mais propenso a digitá-los com outro título. De qualquer forma, tenho muita coisa a me ocupar pelos próximos dias, e assim, nem sempre estarei disponível para publicar um novo post. Embora nunca se sabe, as vezes basta uma súbita saída para almoço, um encontro repentino, que impacta, desperta memórias, afeta e abala ao mesmo tempo, toca o seu exato ponto mais sensível justamente na hora mais crítica do dia. Bate de certa forma, causa  impacto,  fica impossível não desejar passa-lo para o papel, digitá-lo, e finalmente acaba chegando ao blog. De qualquer forma, não terei muito tempo nos próximos dias, para as divagações de praxe. Como deliberadamente tenho me privado de televisão e jornal há dois meses, meu último espetáculo circense assistido na tevê, foi o deprimente espetáculo midiático da votação do pedido de impeachment contra a presidente na Câmara dos Deputados em Brasília, no domingo 17 de abril último, que não preciso dizer, me chocou profundamente. São portanto dois meses completos sem assistir tevê, sobretudo os telejornais noturnos, ou até mesmo a programação diária, e também sem ler os jornais impressos, que não comprei mais, só pela internet uma coisa ou outra, que os amigos enviam por e-mail. Um jejum que pratico em forma de protesto, enojado da super edição da mentira de forma institucionalizada em rede nacional. Jejum e afastamento midiático, que me deixou desatualizado em termos de política nacional, já que não venho mais acompanhando os bastidores da política. Acho que não devo continuar comprando essa briga, dando murro em ponta de faca, no pequeno espaço de um blog privado, e ainda com muito pouco acesso. Foi nesse momento, que veio à luz a ideia de procurar ocupar-me mais com a criação, com a invenção, pelo menos por enquanto, porque não me considero palmatória do mundo, longe de mim tamanha presunção. Por enquanto estou achando ótimo, gosto muito, e finalmente conseguindo ocupar-me de forma criativa e inteligente, conseguindo produzir alguma coisa, mostrar outras em forma de conto, que exponho aqui e em redes sociais. Então, estamos firmes. Saudações, e até breve.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

A despedida da Soberania



Tenho acompanhado os vídeos com a Presidente Dilma, disponibilizados na internet, dos seus discursos, últimas viagens e algumas cerimônias feitas em sua homenagem, por diferentes setores da sociedade, sobretudo os movimentos sociais. E a cada evento, vai ficando a impressão de uma despedida, triste mas gloriosa, gloriosa porque defensora de valores muito mais nobres, que os valores daqueles que a estão substituindo no Palácio do Planalto. A aparente vitória passageira da escória política interina e provisória, que assaltou o poder, é insustentável ao longo do tempo, porque como não tem legitimidade, compromisso com nada, mostraram as garras, logo de cara, ao desmontar tijolo a tijolo todo o arcabouço político do Estado Brasileiro, montado nos últimos anos, para atender direitos assegurados pela Constituição de 1988. Uma tragédia, qualquer retrocesso com retirada unilateral de direitos civis. Sem consulta pública à população, se retira direitos de forma arbitrária e unilateral. O povo vai começar a sentir daqui a pouco, vai começar a apertar a vida de dezenas de milhares ou milhões de pessoas, não tarda muito. Então acordarão se sentindo malogrados completamente, ao ter apostado as fichas na queda da presidente, que estava permitindo um padrão de vida, apesar da crise internacional, ainda em bom nível à toda a população. Por ter apostado num grupo político composto por bandidos e estelionatários, que querem vender o país a preço de banana, apenas em benefício próprio e familiar. Toda a gente, que apoiou esses caras, daqui a pouco vão acusar o golpe em suas carteiras, o golpe que começou primeiro em Brasília, afastando a Presidente, chegará também inexoravelmente à população beneficiada por toda a política, que estão desmontando agora, por incrível que pareça, para um governo apenas interino e provisório. Concluo, tentando dizer alguma coisa a respeito de Soberania. Não que a soberania esteja representada na figura da Presidente Dilma apenas, não é isso, a Presidente é um símbolo, um símbolo importante, da normalidade do Estado Democrático de Direito funcionando em nosso país, uma presidente eleita, governando com normalidade, cumprindo sua função de agente público, responsável segundo a Constituição, pela condução do país, a nação brasileira, no rumo certo para alcançar e ampliar mais soberania, não apenas para os seus cidadãos, mas também na cena internacional enquanto nação soberana. É dentro dessa linha de raciocínio, que a gente ver desaparecer subitamente, a ambição nacional de ser um dia membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Adeus aos Brics, pelo menos adeus ao papel do Brasil nos Brics. Adeus à consolidação da emergência econômica de dezenas de milhões de cidadãos brasileiros, que voltarão, retornarão ao padrão de décadas atrás, não só em consumo diário de calorias, mas em direitos e cidadania. Portanto, é lamentável, assistir diariamente a despedida da Soberania. Assisto com uma pena danada.



quarta-feira, 8 de junho de 2016

Brockwell Park


No verão de 1982, estava passando uma temporada em Londres, Inglaterra. Cheguei logo depois do fim do inverno, como era a primeira vez, não tive coragem de encarar um inverno europeu em sua plenitude, então evitei chegar no auge do inverno, mesmo assim, quando pus os pés no Reino Unido, ainda fazia muito frio, com temperaturas com o termômetro muito longe de qualquer coisa, que já tivesse vivido antes. Dessa forma, torci muito para que a chegada do verão não demorasse. Quando finalmente chegou, já estava morando no bairro do Brixton com alguns amigos franceses e italianos, no lado sul do rio Tâmisa, distrito de Lambeth, muito perto portanto do histórico centro velho de Londres,


tanto que hoje essa região está completamente valorizada, em comparação com a época em que lá residi. Alguns chegam a dizer, que a região está passando pelo que se chama agora de gentrificação, o que é péssimo, porque esse movimento de valorização e encarecimento vai acabar expulsando muita gente do bairro, gente que era a alma do velho Brixton desde o fim da segunda grande guerra. Quando escolhi Londres como destino, tinha alguns objetivos em mente, como melhorar o conhecimento da língua do país, estudei inglês em duas escolas diferentes, além disso buscava me fortalecer psicologicamente, para tentar encontrar outra maneira de ganhar a vida, em algo diferente do que vinha fazendo até então, e não gostava, queria mudar, fazer outra coisa.



Aberto para o novo experimentei várias coisas diferentes, como fazer figuração em grupo teatral, dança contemporânea, back vocal em bandas pop, modelo vivo em escolas de arte ou em estúdios de desenho animado, cumim em restaurante, e até voluntário na área de saúde mental, com esquizofrênicos, uma barra total, que não consegui segurar, porque a teoria na prática é outra. Foi quando entendi a razão, de tantos psicanalistas cariocas recusar atender em consultório gente muito torta.



Como estava em processo de mudança, já estava portanto em viagem, e também por estar em outro país, outra língua, comida, arquitetura, outro clima, etc. Considerei não haver momento melhor e mais oportuno, para fazer o teste do Ácido, que já havia feito no Brasil, só que agora seria sob supervisão de um profissional maduro, sério e respeitado no pedaço, que daria, como fez depois, todo o suporte posterior, para destrinchar o material, que porventura viesse à tona durante o teste, e que não é pouca coisa, um desafio e tanto, principalmente para quem, se encontrava fora do país de origem, etc.


Apesar dos riscos, resolvi encarar e apostar na experiência, precisava tentar alguma coisa, porque buscava uma mudança radical. Então parti para a primeira experiência lisérgica em terras britânicas em pleno verão londrino, durante o mês de julho, com Dr. Huxley, que tinha acesso ao material procedente do Laboratório Sandoz na Suiça, que usava em pesquisas de ponta com pacientes terminais e outros.



Tomei o AC em sua casa de Hampstead por volta das dez da manhã, onde fiquei durante toda aquela jornada, com ele me acompanhando e estimulando, gravando algumas coisas que dizia, etc. Por volta das cinco e meia da tarde, achou que já estava legal, para voltar para casa, então me liberou. Quando cheguei na rua não estranhei muito, não era muito diferente de quando fumava um haxixe mais forte e concentrado, também já havia se passado quase seis horas que tinha tomado o AC. Sentia-me seguro e forte em meio a desconhecidos, sabia onde queria chegar, e assim cheguei em casa ainda claro, porque era verão, onde os dias claros permanecem até quase dez da noite. Em casa encontrei um amigo francês, que estava curioso a respeito do teste do Ácido, contei algumas coisas, mas queria muito sair, voltar para a rua, ir até um parque, que tinha perto, o Brockwell Park, para onde me dirigi a pé e só. Lembro ter caminhado muito dentro do parque, que àquela hora começava esvaziar, havia alguns gays mais velhos fazendo pegação, mas não me assediaram, ainda restava alterações do Ácido, sentia-me muito doido, devia estar com cara de maluco, de modo que todos eles sumiam, assim que aparecia no pedaço. Acabei não encontrando ninguém para trocar ideia. Andei muito até cansar e começar a escurecer. Quando me dei conta da hora e resolvi voltar para casa, vi que os portões do parque já estavam fechados, então tive que escalar um imenso portão de ferro, correndo o risco de escorregar, me ferir, enfim, sofrer um acidente sério num lugar deserto àquela hora da noite. Mas consegui chegar em casa são e salvo.


sábado, 28 de maio de 2016

Em terras da rainha


Aos trinta anos, começo a encontrar alguns indícios do que gostaria de fazer, algo diferente do que vinha fazendo até então. Na primeira tentativa logrei uma frustração muito grande ao não receber a bolsa, que permitiria me sustentar, enquanto escrevia a dissertação de Mestrado de Filosofia no IFCS/RJ. Com isso, foi descartada a primeira tentativa de mudança de vida, já que buscava a alternativa no ensino superior em universidades públicas, onde o Mestrado era a condição fundamental para ingresso. Ao voltar às minhas atividades profissionais na área de Shipping, num ambiente refrigerado e cheio de engravatados, a insatisfação continuou e era grande, sabia que precisava mudar, precisava encontrar outra maneira de ganhar a vida. Mas não havia jeito de mudar, nem mesmo com o auxílio da psicanálise, primeiro porque, a perda da bolsa de mestrado era muito recente, e ainda não havia encontrado outra alternativa clara, havia indícios ainda nebulosos; e segundo, porque era muito difícil largar, abandonar algo que vinha fazendo há dez anos, trocar o certo pelo duvidoso. Começava a me estabilizar profissionalmente, era bom naquilo que fazia, não era brilhante, mas quase impecável, pois raramente cometia erros. Ganhava a vida em algo, que sabia fazer muito bem, mas não amava, e isso incomodava. Com a passagem do tempo, parecia que a situação se agravava cada vez mais, gerando angústias, principalmente a partir do momento, que comecei a ter certo reconhecimento no mercado, inclusive com reflexo em minha remuneração. Como era expert em fretes marítimos de cargas, era de certa forma, disputado no mercado, e como o mercado de profissionais nesse ramo era restrito e constituído de gente muito mais velha, passei a ser a bola da vez, convites não faltavam me assediando, com propostas salariais melhores. Via a possibilidade de escapar se afastando cada dia que passava. Tanto, que quando anunciei o meu desligamento da empresa, para uma temporada em Londres, capital mundial do Shipping na ocasião. Para minha surpresa, fui até incentivado pela chefia, a me aperfeiçoar no assunto, quando chegasse à Inglaterra. Assim o meu futuro estaria assegurado de forma definitiva, quando retomasse o meu lugar na volta. Não faziam a menor ideia do que se passava em minha cabeça. Não que procurasse as luzes da ribalta, como sonhara na adolescência, mas procurava por algo, que proporcionasse mais alegria e satisfação, que fizesse com mais amor e dedicação, que não fosse um estorvo, que a cada dia passado só aumentava.

Ganhei a passagem de ida em navio mercante de carga, com direito a camarote exclusivo, pequeno apartamento, uma saleta com sofá e mesa, quarto com cama de casal e toalete com ducha de água quente. Embarquei no porto de Santos, São Paulo, um pouco depois do carnaval de 1982. Uma viagem de quatorze dias, que transcorreu tranquila, sem mar agitado, sem enjoos, li bastante, e fazia as refeições junto com os comandantes e familiares de tripulantes. Viagem que findou no terminal portuário de Tilbery Town, na grande Londres, que me contaram outro dia, não existir mais, não a cidade, claro, mas o porto. Ao chegar a Londres, o navio com alguns problemas mecânicos, foi obrigado a permanecer ancorado por mais sete dias. Ao saber disso, resolvi permanecer hospedado no navio, já havia feito amizade com familiares da tripulação, que viajavam a passeio, e mesmo sem conhecer a cidade ainda, por falar um pouco de inglês, escolheram-me como guia, esse foi então o meu primeiro trabalho remunerado em terras britânicas, e enquanto isso, ao permanecer no navio, economizava um pouco mais com diárias de hotel. Durante esse período inicial, fiz os contatos principais, comprei o “London Alternative book”, considerado na época a bíblia dos alternativos e de gente com pouco dinheiro na capital inglesa, e comecei a procurar hotel. Assim iniciei a experiência, que durou mais de um ano em terras estrangeiras, mas que me pareceu muito mais, em razão de tantas coisas passadas e vividas, que pretendo contar em seguida, se a memória permitir, na forma de pequenos textos, para não cansar o leitor. Até a próxima vez, então.    

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Chico dos Santos




Chico dos Santos
Dos deuses, das musas, dos anjos,
Das adivinhações, das viagens,
que alucinam e elucidam,
Das aparições súbitas, repentinas,
Porque não esperadas.
Chico dos santos das gargalhadas,
Que mesmo vivendo muito distante de Ronald Laing,
Também viu a ave do paraíso,
E jamais voltará a ser o mesmo.
Chico dos Santos
Das dores e dos prazeres,
Da prudência e das loucuras mais inusitadas.
Chico dos santos da disciplina lisérgica,
Das mirações da Ayahuasca,
Da parte visionária do teste do ácido.
Chico dos santos
Dos chás amazônicos fenomenais,
Com poderes capazes de alterar o ser, a visão, o humor, o amanhã.
Chico dos Santos o reverenciado,
Chico dos Santos perdeu a memória,
Ficou e foi esquecido,
Está com o mal de Alzheimer.
Quem sabe, não quis a natureza poupá-lo,
De ter que registrar e fixar na mente,
Todos os dissabores
Daquilo que se passa em nosso país.




terça-feira, 24 de maio de 2016

Nossa, como é real!


Confesso, que quando postei pela primeira vez a charge acima, que faz a capa do post, sobre a situação política nacional, me senti pouco seguro ao publicá-la, pois temia que aquilo não retratasse de fato a nossa realidade, tal era o barulho e bombardeio na ocasião, que fazia a mídia visando criminalizar, desqualificar e desgastar o governo diariamente, e a toda a hora, a todo tempo, numa cantilena, tipo lavagem cerebral, cotidiana, massacrante, de massa, com a visão totalmente distorcida da situação real do país, com uma versão, que ainda hoje se ouve quem a defenda, de que era a presidente, quem chefiava uma quadrilha de bandidos. Pois era tudo o que a grande imprensa noticiava, bradava diariamente em letras garrafais em suas manchetes, e que imediatamente colava na mente do povo. Tudo isso, já vinha acontecendo bem antes da votação do impeachment na Câmara em 17 de abril último, e rolou durante todo o ano de 2015, e em 2016 fizeram uma pequena trégua por ocasião das festas de fim de ano e o carnaval apenas. Logo em seguida vieram com tudo para cima do governo, e não pararam a intensidade dos ataques até a votação do impeachment na Câmara. Por incrível que pareça, revendo a charge hoje, nossa! Como se tornou real! Impressionante! Diante dessa atual conjuntura nacional, sabemos que não basta mais apenas o fato, e sim as versões que são feitas desse fato. Se a versão apresentada é mentirosa, não importa nem um pouco, o que importa agora é o número de acessos na net, e se a versão mentirosa vai tocar alguém, vai sensibilizá-lo, vai colar na mente, porque será essa mente, que vai repassar adiante toda a baboseira mentirosa, que chamam eufemisticamente de narrativa da direita. Se foi assim que se deu, numa sociedade educada e sofisticada como a alemã dos anos 20 e 30, porque também não seria aqui nos trópicos, ainda um tanto atrasados em termos de cultura letrada, e mais pobres do ponto de vista econômico? Não deu outra, muita gente boa aderiu, ou foi pega, pescada, fisgada, cooptada, gente que considerava inteligente, alguns um tanto pseudo-intelectuais, também caíram nessa esparrela, entraram de gaiato na cantilena da direita golpista e aderiram de malas e cuias. Viraram defensores intransigentes do golpe, com argumentos os mais estapafúrdios, golpistas com ardor e paixão, gente sempre muito difícil para se discutir, com seríssimas alterações emocionais, porque não contra argumentam jamais, evitam apresentar o contraditório, para a discussão prosseguir, preferem ofender, desqualificar o oponente, saem do assunto completamente e partem para a grosseria, naquela coisa de querer ganhar no grito. Um horror! São horríveis! Dizem que na Alemanha nazista, era comum ouvir, que com inimigos não se discute, se elimina com eles. Também depois do golpe, que perpetraram, de forma sub-reptícia, na mão grande, no golpe baixo, no vale tudo, na política do esgoto. Esperar o quê, dessa gente, não é? Os mais otimistas dizem, que muitos se arrependerão mais adiante, alguns deles já começam a expor algum grau de insatisfação com uma coisa ou outra do ilegítimo governo Temer. Em 1964, se bem me lembro, muitos golpistas da classe média de primeira hora, a partir de certo tempo, quando o arrocho da repressão começou a botar as garras de fora, começaram a pular do barco, com ele em movimento. Muitos desses depois tiveram filhos presos, mortos ou no exílio, filhos que pegaram em armas contra um regime político, que os seus pais haviam apoiado. O cantor e compositor cearense Belchior até compôs a canção “Como nossos pais”, que ilustra e exprime em parte essa situação, essa relação, que depois também foi gravada pela genial Elis Regina, com sucesso retumbante.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Senhor Grieger




Posso ter sido deveras imprudente, mas assumi todos os riscos, quando decidi contratar um detetive de terceira, desempregado, posto para fora do serviço público, por falcatruas cometidas, durante o exercício profissional de investigador de Polícia Civil, num distante subúrbio carioca. Fiz, porque precisava continuar a estória, que estava a escrever sobre o Sr. Rui Grieger. Projeto que quase pus a perder, quando fui com muita sede ao pote nas entrevistas, muita avidez por suas estórias incríveis, o fazendo falar por horas e horas, uma vez em sua casa, mas na maioria das outras vezes em mesa de bar, regado à muita cerveja, seu combustível básico. Até o momento de fazê-lo desconfiar do ouvinte, e se recusar dali por diante, não mais me receber, nem tomar cerveja. Mesmo depois, que notei a sua zanga, proibindo-me de telefonar para o seu número de celular, continuei a circular por sua rua, vez ou outra, na busca de reencontrá-lo, procurando entender o que tinha acontecido, qual a razão do afastamento, do quase rompimento. Em algumas dessas ocasiões, sempre durante o início da noite, quando ocorre algum encontro, continua a parar, para um cumprimento rápido, a diferença agora, é que demonstra de cara, que não pode ficar muito tempo, dá logo uma desculpa, corta qualquer possibilidade de um papo mais prolongado, voltou a ser o alemão sistemático, que sempre foi, e havia suavizado um pouco no início das entrevistas, quando ainda me considerava amigo, ao preferir chamar-me mais de amigo do que pelo nome. Notei em duas ocasiões, nesses encontros casuais e involuntários, numa delas vi que vestia um agasalho de couro preto, bem característico de tribos “Leathers”, muito comum em certos Clubes e Pubs londrinos, algo próximo ao uniforme de certas tribos sadomasoquistas. Então, dessa maneira, o encontrei todo paramentado, consegui enxergar até um par de luvas do mesmo tom. Pareceu-me estar arrumado para um evento especial, porque até então, não o havia visto ainda vestido daquele jeito, para tomar cerveja no boteco da esquina, por exemplo. Aquilo tudo me fez acender uma luz amarela, de advertência, aí tem coisa, matutei. Na segunda noite então, foi luz vermelha na hora, tanto que o próprio percebeu e foi duro, seco e negativo durante o curto tempo do encontro. Passou a partir daí, demonstrar uma certa perturbação, quando me vê, e deu para dizer agora, frases do tipo: “hoje estou concentrado apenas no que vou fazer mais tarde, mandar mais um para a vala,” e outras do gênero ou parecidas. A intenção nítida e evidente, é tentar me afastar, amedrontando-me, fazendo terror, trazendo o medo para a porta da frente. Outro detalhe, que me chamou atenção, foi ter raspado completamente a cabeça, manteve a barba aparada de forma correta, mas a cabeça careca. De forma, que agora com aquelas botas negras, casaco de couro da mesma cor, luvas, o boné deve ter esquecido em casa, pensei. Se fosse um pouco mais jovem, certamente arriscaria a achar, que estava diante de um Skin Head maluco, nazistão. O homem já tem 56 anos, está perto de fazer aniversário, mas parece bem menos, talvez uns quarenta e pouco. De modo que fiquei com uma pulga atrás da orelha. Aí tem coisa, pensei. Bem, diante de tudo, não preciso dizer, que depois pensei a respeito, que história? Tudo muito curioso e intrigante, tem algo que não bate bem, não fecha a conta. Continuo confuso e sem entender direito o que se passa.
Quando algumas noites atrás reencontro Samuel no banho turco da sauna, já o havia visto antes, lá mesmo, quando então me deu o seu cartão de detetive particular. Dessa vez, sem muito assunto como sempre, porque quase nunca conversamos, não o conheço direito, só o cumprimento padrão e normal, lembrei-me do cartão de apresentação, foi o gancho, que precisava para quebrar o gelo. Não só deu-me outro, como ainda perguntou, se estava precisando de algum serviço, e aí já foi acrescentando, sem me deixar responder a primeira indagação, que não precisava me preocupar com pagamento, só recebia no final, quando entregasse o produto do seu precioso trabalho. Então, que achas? Foi a sua última pergunta.

Assuntos conexos:





 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

No outro lado da cidade

Centro de Brixton perto da estação do metrô


Onde morei por mais tempo, no período que vivi em Londres, foi na Mervan Road, Brixton, Distrito de Lambeth, sul de Londres, perto do rio Tâmisa, na sua margem sul.

Mervan Road em Brixton


Curiosamente, naquela época, diferente de Paris, onde as duas partes da cidade separadas pelo rio Sena, tanto na Rive Gauche como na Rive Droite, não se nota que está em outra cidade, ou outra parte da cidade com padrão reduzido ou muito diferente do visto em áreas mais turísticas, o padrão é mantido, embora seja natural encontrar diferenças arquitetônicas, etc. Em Londres dos anos oitenta, bastava atravessar o rio Tâmisa no sentido sul direção Distrito de Lambeth, cruzar o rio, para perceber que havia chegado ao subúrbio, e parecia um subúrbio distante.

Brixton perto da linha férrea


A região de Lambeth, onde fica Brixton, inclui também o bairro de Clapham North e Stockwell, onde foi morto o brasileiro Jean Charles em 2005, confundido com um terrorista, foi fuzilado dentro do vagão na estação de metrô. Era nessa região, que se concentrava grande parte da comunidade afro-descendente de Londres, negros de diversas origens, sobretudo da Jamaica, tanto que havia quem chamasse a região de pequena Jamaica. E tinha péssima fama, lugar de bandidos, narco-traficantes e muitos assaltos, eu mesmo fui testemunha disso, quando comecei a procurar casa, para sair do hotel, e mencionei para alguns amigos, que pretendia mudar-me para Brixton, pelos preços mais camaradas, a reação não foi nada favorável.
A feira de PortoBello Road em Notting Hill


Claro, que também tem negros em outras partes e bairros da cidade, como em Nottiing Hill por exemplo, onde tem uma feira famosa na Portobello Road, com o mesmo nome da rua, presente em todos os guias turísticos; além do carnaval no mês de agosto. Notting Hill, que já naquela época era famoso e turístico, bairro que deu até título para filme de Hollywood com Julia Roberts, coisa que Brixton daquele tempo, estava a anos luz de ser. Muito pelo contrário, Brixton era demonizado e rejeitado, como um lugar onde a burguesia mais padrão evitava por os pés, evitava mais do que qualquer coisa, e por tudo mais sagrado na vida, passar perto.
Brixton


Cheguei a ouvir também, que o nome Brixton e inferno, seria quase a mesma coisa, quase sem diferença. Já os ingleses brancos mais descolados, eram assíduos frequentadores, principalmente nos shows de música afro-caribenha, de todos os ritmos, onde se destacava, claro, o reggae. Quanto aos brancos mais intelectualizados e mais endinheirados, os burgueses, que os parisienses gostam de chamar de “bourgeoisie intellectuelle de gauche”, costumava vê-los mais no Ritzy Cinema, na audiência de filmes de arte, Fassbinder por exemplo, que passava de vez em quando. Senão, assistindo algumas das muitas conferências com noite de autógrafo junto, que rolavam no Ritzy durante a passagem de algum escritor célebre por Londres. Quer dizer, que Brixton naquela época era demonizada e evitada pelos mais bonitinhos da sociedade, mas os mais espertos, ligados e malucos, que sabiam das coisas, onde estavam acontecendo, e não se importavam nem um pouco se era ou não em Brixton, iam de qualquer jeito, iam sempre, estavam sempre por lá fazendo parte e compondo aquele cenário. De forma, que Brixton tinha muita vida, muito movimento tanto de dia, como durante a noite, pelo menos até o horário de fechamento dos pubs e metrô, the tube, como preferem dizer, algo entre 23 horas e meia noite. Depois morria completamente, pelo menos nas ruas, porque em lugares frios, as ruas durante a noite costumam ser meio vazias mesmo, tudo se passa mais nos interiores, seja o interior de um café, pub, wine bar, restaurante, ou até mesmo o interior de um lar aconchegante, onde se foi convidado para um jantar informal e casual, ou quem sabe até mesmo uma festa mais ampla, cujo dever e obrigação é portar na chegada, tanto no jantar como na festa, uma garrafa de vinho a tiracolo.

Brixton hoje

Levar um vinho, esse era o preço a pagar, sempre que pintava um convite para jantar ou uma festa, como convidado, ou convidado de convidado, o que era muito mais frequente, quase um penetra, um meio penetra. Aliás, o conceito de penetra, praticamente não existia no mesmo sentido, que é empregado no Brasil. Naquele circuito e círculo social de Brixton dos oitenta, penetra era um conceito inexistente, sobretudo entre os forasteiros, no meu grupo, por exemplo, todo mundo era penetra de alguma forma em todo aquele incrível contexto. Tinha que levar uma garrafa de vinho, senão corria o risco de não poder entrar, mas valia a pena levar o vinho, porque em geral, não sei qual a magia, talvez só um físico maluco saiba explicar a mágica, que mesmo cada convidado levando apenas uma garrafa de vinho, todo mundo no final da festa sempre tinha a sensação de ter bebido muito além da capacidade da garrafa levada, uma magia, ainda a ser explicada, ou então alguém deixou de beber, ficou sem ou bebeu muito menos. Não sei explicar direito essa matemática, porque quando me dava conta disso, já estava doido, colocado, e para mim todo mundo também estava, então tudo bem, estão todos bêbados, embriagados, de pileque, chapados, doidos, meu deus, como beberam!



Assunto conexo:
O velho Brixton está desaparecendo

quarta-feira, 18 de maio de 2016

O velho Brixton está desaparecendo


Morei na Mervan Road, 38, no bairro de Brixton, última estação da linha azul do metrô de Londres no sentido sul, a “Vitoria Line”, durante seis meses no ano de 1982, onde passei todo verão, outono e o comecinho do inverno. Mudei-me para o Brixton, assim que percebi, que se quisesse prolongar a minha estadia, precisava deixar de morar em hotel, e encontrar alguma coisa para alugar. Foi quando, resolvi deixar Bayswater, onde morava numa mansarda, água-furtada, aposento que em geral, não passa de pequeno studio com janela dando, brotando por cima do teto do prédio, aquelas janelinhas nos tetos dos prédios antigos, muito comuns em cidades europeias. Bayswater, onde morei por seis semanas num “Bed and breakfast”, sexto andar sem elevador, de modo que era duro chegar lá em cima, mas depois que me aconchegava, era uma delícia. As vezes os pássaros, pombos em sua maioria, insistiam em namorar na minha janela, alguns mais atrevidos, ousavam até fazer amor na minha frente, o barulho deles perturbava um pouco a concentração nas leituras. Por perto haviam vários restaurantes gregos baratos, onde ainda se podia jantar, com uma taça de vinho incluída, por sete libras, incluído as danças típicas com músicas parecidas com “Zorba, o grego”, e quebra de pratos, o gerente confidenciou uma vez, que a crise econômica tinha levado à redução na quebra de pratos, uma coisa tradicional na cultura dos restaurantes gregos. Morar em Bayswater, me obrigava a cruzar o Hyde Park em direção ao curso de inglês, que ficava na região de Victoria Station, quase todos os dias, o que fazia quando o tempo permitia, e fazia com imenso prazer, tal a beleza de um dos mais importantes, grandes e bonitos parques reais londrinos, coisa que a maioria dos outros parques não são, ou seja, Royal Park. Assim que cheguei me hospedei em vários lugares diferentes, porque considerava que assim teria mais chances de conhecer a cidade de verdade. Comecei pelo Earls Court, depois fui para a região em torno de Vitoria Station, onde ficava o meu curso de inglês e a gare do trem para Paris. Já morando em Brixton, assisti momentos muito tensos e violentos entre a polícia e moradores, em geral homens negros jovens organizados, tumultos que provocavam além de muitas prisões, alguns incêndios em estabelecimentos comerciais, havia sempre um clima tenso no ar entre a população negra do pedaço e a polícia branca, que circulava pelo bairro.

Mercado de Brixton hoje


Por outro lado, existia uma atmosfera cultural muito viva e intensa, já que, com os aluguéis mais baratos, atraiam muitos artistas jovens, em começo de carreira, e outros nem tanto, de todos os tipos, o que dava ao lugar uma cara toda especial e peculiar, única em toda Londres daquela época, tanto que a gente andava por toda a parte de Londres a noite, procurando endereço de alguma festa nova, e não se via nada com o caráter de Brixton. Terra de David Bowie, escritores e cineastas. No Ritzy Cinema por exemplo assisti uma palestra memorável com William Burroughs, o velho beat, claro que não tanto como o psicólogo de Havard, Timothy Leary, mas também guru dos "estados alterados de consciência" e autor do viajante e delirante livro "O Almoço Nu"(The Naqued Lunch). No Brixton Fear Deal assisti show do The Clash, quando ainda estavam no auge, além do Dead Kennedy e muitos outros. É muito bom saber, que ambos ainda existem, mesmo que tenham outros nomes hoje em dia, embora o Ritzy Cinema, pelo que diz a matéria no link abaixo, tenha quase por milagre conseguido manter o velho nome, bom e importante preservar e conservar certos detalhes, que estão na memória afetiva de tanta gente. Gostava muito da feira de rua da comunidade negra do bairro, onde encontrava produtos parecidos com os do Brasil. Foi o único lugar do mundo, onde encontrei uma livraria especializada e com acervo apenas em assuntos exclusivamente NEGROS/Africa negra e suas comunidades espalhadas mundo afora. Na Londres daquela época, quem queria assistir show musical (Rock, Punk e principalmente Reggae) por bom preço, era preciso ir até ao Brixton, ou quem sabe talvez ao pequeno quartier Soho no velho centro da cidade. Ainda bem, que os primeiros filmes de Stephen Frears, como é o caso de "My beautiful laundrette", e sobretudo "Sammy and Rosie", ambos escritos e roteirizados pelo escritor paquistanês Hanif Kureishi, retratam, documentam e registram um pouco de como era a vida,  a atmosfera, o clima cultural e político, que rolava no Brixton daquela época. Uma mistura de pequenos artistas em começo de carreira, escritores de todo tipo, idades e nacionalidades, muitos músicos, muitos, a maioria atraída pela intensa atividade musical do lugar, inclusive Boy George bem jovem ainda, do início do Culture Club, um verdadeiro "melting pot". Depois que deixei Londres, só encontrei outra cidade na Europa, com a efervescência cultural similar a de Brixton, em Berlim . Agora se vier mesmo a revitalização, gentrificação ou sei lá o nome, encarecendo os aluguéis, Brixton certamente se descaracterizará completamente, será uma pena, embora para os turistas, bom deixa pra lá...

Brixton hoje em dia




segunda-feira, 16 de maio de 2016

Sem esconder o jogo

Assim que vi aquele homem alto, falando alto no balcão do bar, logo de cara vi que não conhecia, chegou ao bar sozinho, desacompanhado, um pouco depois que cheguei. De imediato pensei comigo mesmo, preciso tomar cuidado, não permitir meus preconceitos depreciá-lo além da conta. Esse é o perigo de todo preconceito, quando, basta parecer, lembrar ou soar um pouco com determinado perfil, para condenarmos implacavelmente alguém, já é suficiente para metê-lo dentro daquelas coordenadas, naquela forma, naquela camisa de força da ideia preconcebida. É muito cruel e injusto, principalmente quando pensamos, que na maioria das vezes nem conhecemos suficientemente o personagem, nem sabemos como realmente é.
No caso agora em questão, o nosso personagem é mulato, 39 anos, diz ter um metro e oitenta e três, altura que o fez jogar na zaga em times de futebol amador, quando mais jovem. Ainda não sei o nome, ou esqueci completamente, de fato tenho algumas dificuldades em memorizar nomes próprios. Se fosse possível voltar no tempo, ao subúrbio do Rio dos anos sessenta e setenta, em vez de mulato, poderia escrever em seu perfil, escuro ou escurinho. Fala que é pai de seis filhos, os quatro últimos com a última mulher, de quem está se separando, apesar de continuar morando na mesma casa, com separação de corpos. Diz que já está procurando casa. Na mesma hora, vira-se em minha direção, e pergunta se sei de alguma quitinete para alugar, quando mal tinha me visto no pedaço, como se estivesse querendo puxar assunto, trazer-me para a conversa, inserir-me no papo. Respondo apenas com um “não sei”, sem demonstrar antipatia. Continua a contar a vida, fala em planos para o futuro, fala sobre tudo, fala muito, fala alto, sua voz é um pouco estridente, e algumas vezes irritante, gera no ambiente um certo mal-estar, mas ninguém reage, protesta ou se manifesta, há um clima indefinido, um grito parado no ar, o que indica, que qualquer coisa pode rolar.
Depois que conseguiu se impor pela fala, de certa forma adquiriu autoconfiança, a ponto de continuar a falar de si, sem demonstrar a menor preocupação se aquilo estava ou não enchendo o saco de alguém. Como se tornou mais natural, a tensão inicial se dissipou um pouco. Antes de se afastar em direção à toalete, pensei que estava indo embora, pois seu movimento dava indicações claras, que estivesse partindo. Colocou uma frase em tom de despedida, como se estivesse concluindo um raciocínio complicado, aproximou-se o mais que pode dos outros interlocutores, abaixa um pouco o tom de voz, e diz: "talvez tenha mais alguns filhos por aí, não tenho certeza, apenas desconfio"; em seguida se afasta rápido em direção ao sanitário.

É muito difícil estabelecer a fronteira precisa entre o preconceito e a realidade concreta do outro, da outra vida. É difícil saber, principalmente diante de um excesso de verbalidade, que por sua vez, manifesta e revela alguma coisa. No caso de nosso personagem, tudo leva a crer, que a intenção de todo o falatório, seria criar uma cortina de fumaça, para camuflar ou esconder algo. Embora tenha dito, que era trabalhador, não lembro mais do ofício, algo entre loja de lingerie ou trabalhador de obra, mas depois que vi a palma da mão aberta, descartei a opção pedreiro. Falando, lembra uma espécie de malandro, cópia serrana do modelo carioca do malandro bandido. Aquele tipo de elemento de quem se espera alguma coisa, não se sabe o que ainda, mas é bom ficar ligado, porque de gente, como o próprio, pode-se esperar qualquer coisa, até mesmo o pior. Com ou sem preconceito, é visível, que não inspira confiança. Quando morava no Rio, conheci umas meninas que curtia esse tipo de homem, o chamado amor bandido, mesmo que não fosse bandido, nem precisava ser, bastava parecer, para as gurias gamarem, sentirem um puta tesão.
O uso que faz de algumas gírias, a ênfase maior em algumas sílabas, a cantiga da fala característica, a ostentação da esperteza, como algo fundamental na autoafirmação. Um marketing de si mesmo permanente. Era visível e evidente a sua querência, estava em busca de, ou procurando algo. Como resolvi partir ao chegar ao meu limite, limite de tudo, até de cerveja, não tive como testemunhar o desfecho, como foi o final daquela noite.