domingo, 31 de março de 2019

Memórias de tempos ditatoriais

Volta e meia me pegava perguntando, quando aquilo, aquele regime militar, aquele barulho de coturnos e botas , iria passar, iria acabar. Foram 21 anos, que parecia não terminar nunca. Foram 21 anos de escuridão, de trevas, de tempo ruim, de censura draconiana contra a imprensa e também contra toda a cultura nacional. Contra o cinema, lembro de quando finalmente consegui assistir Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, depois de três anos de espera, com o filme aguardando liberação dos censores, para nossa surpresa, além de vários cortes em cenas importantes, o que deixava o filme sem sentido em certas horas, puseram também bolas/tarjas negras nos genitais dos atores, que apareciam nus em algumas cenas, o que tornava cômico o que não era para ser cômico. Sem falar em dezenas de outros filmes, que jamais conseguimos assistir. Como na época flertava um pouco com o teatro, procurava assistir quase tudo, não havia semana que não fosse ao teatro, e era duro, porque muitos diretores e dramaturgos, para fazer passar os seus textos pela censura, praticavam um verdadeiro malabarismo verbal, construindo metáforas sobre metáforas. O mesmo fenômeno também acontecia com os compositores da canção popular, a chamada MPB. Tínhamos de fazer um esforço extra, além da conta, de sempre buscar outros sentidos nas entrelinhas, no subtexto, no sentido do sentido. Quanto aos livros, era onde ficava a pior parte da estória, porque sabemos a importância da leitura, para qualquer jovem em formação, e não tinha escapatória, a censura era implacável. Livro com capa vermelha era recolhido assim que o livreiro o exibia nas vitrines das livrarias. Visando causar notícia e impacto midiático, os censores preferiam usar a estratégia de não visitar as editoras, a repressão da censura se dava na ponta, na distribuição, com isso causava um impacto maior, além do prejuízo financeiro no investimento. Se algum editor ousasse publicar um livro que tivesse no título a palavra “revolução”, iria se ver em maus lençóis. Não preciso dizer, que muita coisa boa e interessante deixou de ser publicada, e não me refiro apenas as obras de nítida conotação política. Só consegui finalmente ler textos marxistas em português depois do 25 de abril em Portugal, que com a revolução dos cravos, publicaram por lá muita coisa, e uma parte do material chegava aqui não sei como.  O ambiente dentro das universidades era o pior possível, primeiro porque não era permitido nenhuma atividade extracurricular, como por exemplo: grupo de teatro universitário, fazer jornais ou revistas, e muito menos cineclube. Os centros acadêmicos tinham sido todos fechados, foram interditados pela ditadura, era terminantemente proibido fazer política universitária. Segundo porque o nível dos mestres, em geral, era muito baixo, já que os melhores professores tinham sido expulsos, banidos, presos, ou estavam no exílio, quando não desaparecidos e mortos. Nesse particular, o pior cenário se dava na área de humanidades, lembro quando estudava na UERJ, tomei conhecimento do caso de uma turma de Ciências Sociais da UFRJ, que de 30 alunos, só sobrou um, expulsos quase todos portanto, no auge do terror de Estado, logo após o AI-5 e do famigerado Decreto-Lei 477. Como o ensino ministrado era completamente insatisfatório, os alunos com condições um pouco melhor, procuravam pagar aulas extras particulares àqueles professores, que haviam sido expulsos, fora do ambiente acadêmico claro. Foi assim, que fiz algumas cadeiras de filosofia com o saudoso mestre Roland Corbisier nos anos de 1975 e 1976. Para concluir, é preciso falar um pouco sobre os alunos infiltrados, ou seja, os agentes do serviço de informação, em geral militares, que eram postos entre os estudantes, com a missão de os espionar, descobrir e denunciar, para os órgãos competentes, possíveis esquerdistas. Eu mesmo tive o desprazer de conviver em minha classe na graduação de filosofia, com a presença de um capitão do exército desde o segundo ano, que inclusive chegou a ser promovido a major durante o curso, e chegou a se graduar. Fato como esse, gerava um desagradável clima de desconfiança e paranoia entre o alunado, porque em geral os estudantes não tinham como saber, quem de fato era o espião infiltrado. Foi um horror o regime de terror!