terça-feira, 28 de novembro de 2017

O jardim de dona Estrovenga

Dona estrovenga é uma velhota baixa e atarracada, não deve passar muito, se passar, de um metro e meio de altura, com uma idade em torno dos setenta anos, talvez um pouco mais ou um pouco menos, porque é sempre muito difícil precisar a idade de uma mulher. Não é gorda nem magra, dirige automóvel, não bebe nem fuma, tem uma pequena cadelinha, que lhe faz companhia, já que é muito solitária, quase não recebe visitas. Leva a vida, a maior parte do tempo, isolada e fechada dentro de casa, e o que faz para ocupar o tempo é um mistério, ler livros não pode mais, pois como sofre de mácula, não pode passar muito tempo com leituras prolongadas, com isso, os livros foram descartados completamente, mantém ainda uma assinatura de jornais, mais por hábito, pois gosta de fazer palavras cruzadas, uma mania que cultiva desde jovem, além disso, ler as resenhas de novelas da telinha, e mais uma ou outra coisa, que encontre no jornal, porque com a política não se ocupa mais, considera uma perda de tempo. Parece um pouco masculinizada, principalmente pela voz, quando a escuto falando, sem vê-la, só pelo tom da voz, já dá impressão de estar ouvindo um homem, tal é a gravidade do timbre, quase um baixo profundo, uma nota a mais ou a menos, facilitaria muito se quisesse ser dubladora, porque poderia perfeitamente dublar personagens masculinos. Mas não é só pela voz, que a deixa com aspecto de macho, acredito que como pertence a uma geração de mulheres, onde era mais do que necessário, esconder o máximo possível, qualquer dissonância da norma vigente, do padrão estabelecido, enrustiu tanto, que acabou alcançando, de forma involuntária, uma afetação além da conta, que não sei se percebe em si mesma. Na versão masculina do mesmo fenômeno, é mais ou menos, o que se costuma observar, em certos gays, que mesmo à distância, se costuma dizer: "lá vem um gay", por mais que ele queira esconder ou camuflar a sua orientação. Esse é um mistério, que guarda trancado a sete chaves, jamais abre ou fala a respeito, ou seja, não gosta de falar sobre a sua orientação sexual. Uma particularidade, que deve ser respeitada. Fica bastante irritada, quando percebe alguma insinuação ou desconfiança a respeito. Bem, voltando para o dia a dia da vida pública de dona Estrovenga, da vida que leva no condomínio, não preciso dizer, que não se dá com nenhum condômino, não fala com ninguém, nem o cumprimento social básico, do bom dia boa tarde, salvo com a síndica, sua cúmplice e confidente, a quem narra todas as intrigas, fofocas e mentiras, que inventa com a sua cabeça maluca e maldosa, estórias que tece na sua falta do que fazer, na vida vazia e ociosa, que leva. Dizem as más línguas, que o seu saco de maldades está quase transbordando. No trato com os empregados do condomínio, faz questão de ser sempre muito dura e autoritária, acha que só agindo dessa forma, eles irão respeitá-la, foi a própria, quando ainda me dava com ela, que me alertou uma vez, que estava sendo muito benevolente com a faxineira, que a qualquer momento, a empregada iria aprontar alguma. "Com essa gente tem que ser durona mesmo, senão não entendem", asseverou. Então, era assim que agia, de forma ríspida, dura, autoritária e arbitrária, falando sempre de cima pra baixo, com todos os empregados, do pedreiro ao jardineiro, tanto que nas redondezas, todos os que passaram pelo condomínio, e que estiveram sob suas ordens, não a suportam, todos têm ojeriza à sua pessoa, todos sem exceção. Tanto é assim, que um profissional, que conheci na vizinhança, desses homens, que prestam qualquer tipo de serviço, trabalha em várias áreas, é pau para toda obra, como se costuma dizer, uma espécie de quebra-galho, um faz-tudo, de bombeiro-hidráulico a jardinagem; nos meses mais frios, costumava comprar dele, lenha de lareira, telefonava e ele trazia, um ou dois feixes, em geral de eucalipto. Mas só consegui comprar poucas vezes, contou-me, que entrava no condomínio meio ressabiado, preocupado e receoso com a possibilidade de um encontro inesperado com dona Estrovenga, com quem tivera um stress sério tempos atrás, temia ouvir algum desaforo, uma provocação, e assim, perder a cabeça, não conseguir se controlar, e acabar fazendo uma coisa pior, porque a odiava profundamente. Nunca soube a razão de tanto ódio, embora desconfiasse e imaginasse, pelo que já conhecia da invocada senhora, e assim acabei perdendo um bom fornecedor de lenha. Todos costumavam dizer, quando queriam se referir à dona Estrovenga, que era muito sistemática. Dessa forma, era sempre muito difícil dona Estrovenga encontrar um jardineiro, que morasse por perto, pelas redondezas, quando conseguia encontrar algum, podia-se ter certeza, que vinha de longe ou de muito longe. Costuma dizer, que jardinagem, é o seu hobby favorito, mas o curioso, é que nunca a vi gastar seu tempo com qualquer jardineiro, por as mãos literalmente na terra, pelo menos, com os jardineiros que passaram por lá. O jardineiro chegava, ela o recebia, dizia o que precisava ser feito, dava as ordens, como se diz, e em seguida voltava para os seus aposentos e se enclausurava. O negócio dela é mandar, adora ter poder, ter alguém sob seu comando, para poder se sentir a tal. Se por acaso, tivesse nascido homem, certamente teria feito carreira, com muito gosto, na cavalaria do exército. Temperamental, irritadiça, de maus bofes e com mania de perseguição, está sempre achando que estão armando algum complô contra si, é muito difícil conviver com dona Estrovenga. Ultimamente descobri mais uma faceta na personalidade de dona Estrovenga, bisbilhotar, mas bisbilhota de forma enrustida, dissimulada, não assume jamais, gosta de ficar atrás de portas ou janelas, na espreita, tentando ouvir conversas, para se prevenir de futuros ataques de potenciais desafetos, que segundo ela, são muitos. Sua palavra favorita é "padrão", talvez por ter se submetido ao padrão  vigente da normalidade sexual dominante durante tanto tempo. Já a palavra que mais odeia, por motivos óbvios, é "capivara". Muito difícil e problemática é a vida de dona Estrovenga!

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