quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Marcas indeléveis

Como o contexto cultural condiciona as nossas escolhas
A arrumação da frase no subtítulo, já implica e supõe uma hipótese: a de que não somos suficientemente livres, a ponto de conseguir ficar imune e não sujeito a tudo o que aconteça a nossa volta. Não se tem como escapar dessa sina, mesmo que queiramos muito e lutemos por isso. Porque somos parte de um “melting pot” cultural, racial, político, econômico, ideológico, filosófico e outros, e que por conta disso tudo estamos imersos num oceano cultural. Quando falamos do Brasil da segunda metade da década de sessenta e começo dos setenta, não se pode deixar de falar na terrível experiência, que foi viver o período da ditadura militar, e que teve como consequência: "a perda da liberdade" de forma efetiva e real. Viver a experiência da perda de direitos políticos e de cidadania, como a privação do direito de organização, por exemplo, proporcionados por regimes políticos de exceção, regimes fora da lei, como foi o caso da ditadura militar brasileira daquele período, já é mais do que suficiente para deixar marcas indeléveis, marcas que ficarão por muito tempo, talvez para sempre e de forma definitiva, pelo menos enquanto vivermos. E marcas, que atingiram não apenas, aqueles que sofreram as sanções criminais, e em consequência torturas na prisão. Desses nem se fala, porque não se trata apenas de marcas, e sim de sequelas muito mais graves e severas. Não pretendo tratar agora da questão do preso político, pois esse não é o foco, que se quer abordar no presente texto, nem é a marca do torturado, que quero discutir. Quero trazer para a discussão, o problema das marcas que condicionaram e influenciaram a vida de determinada geração de brasileiros de forma definitiva, influindo nas escolhas, que acabaram por determinar o rumo a seguir na vida e todo o futuro. No caso brasileiro, a perda da liberdade, ocorrida pelos atos que levaram a perda das garantias legais asseguradas pela constituição de 1946, já coloca de imediato a questão da liberdade na linha do horizonte de toda uma geração. Porque se configura como a presença de algo ausente, de tão escandalosamente ausente, que acaba por se fazer manifestar. Por estarmos privados de tantos direitos civis, antes amparados pela Carta Magna, agora a liberdade se impunha a todos nós, e o que é hilário, mesmo à revelia dos quartéis. Têm-se, portanto a demanda e a presença da liberdade, em sonhos, anseios, corações, idéias, enfim, a liberdade está presente nos corações e mentes de várias formas, dimensões e perspectivas. Esse é um aspecto da presença da liberdade nas mentes de toda uma geração num determinado período do tempo, no daquele período terrível foi essa experiência específica e cheia de especificidades de uma ditadura. E para concluir essa primeira parte, que trata da chegada da liberdade através da esfera da violência imposta, e violência pela opressão de um determinado regime político, e que se caracteriza pela relação entre liberdade e violência. Agora passemos a outro aspecto da questão da presença da liberdade nos corações e mentes daquela mesma geração, no caso não mais pelo prisma da experiência da violência imposta mencionada acima. Agora a motivação, tem outra vertente e origem. Trata-se da questão cultural dominante, ou melhor, da superestrutura ideológica, para usar uma expressão da metáfora marxista. E depois de passados esses anos todos, e quanto mais o tempo passa, mais se têm o privilégio de poder olhar todo aquele período com algum distanciamento, o que facilita bastante, possibilita inclusive poder enxergar melhor e ampliar a compreensão de porque aquilo tudo se deu, e de como se deu. Como é sabido, aqueles anos fizeram parte de um período da história do mundo, considerado muito conturbado para os conservadores, e para onde convergiram ao mesmo tempo várias demandas, que estavam reprimidas há muito tempo. Era a questão da repressão sexual, da liberação dos costumes, do preconceito contra os homossexuais, da opressão contra a mulher, o chamado sexo frágil, do problema racial contra os afro-descendentes, e da luta pelo boicote ao serviço militar, ambos nos EUA, que provocou várias deserções, inclusive de celebridades, para fugir da obrigação de ter que arriscar a vida na guerra do Vietnam. Enfim, problemas que se transformaram em lutas reivindicantes, que buscavam ampliar os direitos civis para minorias. Portanto mais uma vez encontramos a noção de liberdade na linha de frente da luta política, e como uma das principais bandeiras, dessa vez por outras razões e motivos, diferente daquilo, que se fazia internamente, na luta contra a ditadura militar. Porque nesse caso, a liberdade não se impõe mais apenas pela violência, como aconteceu durante a ditadura, agora a liberdade se impõe, chega até as mentes, pelo condicionamento ideológico através do caldo cultural dominante da época. Repetindo, apenas para reforçar, num momento, através da esfera de experiência da política interna em âmbito nacional, a liberdade entra na linha do horizonte determinada em “última instância” pela VIOLÊNCIA; em seguida, e por razões diferentes, porque a esfera de influência tem um âmbito internacional, a necessidade de mais liberdade se dá MAIS pela força da IDEOLOGIA, isto é, através da cultura ideológica da luta política. E assim, pelo que acaba de ser exposto, fica claro as duas visões a respeito da presença da noção de liberdade entre nós no período estudado, é bom lembrar, que utilizei a noção de "determinação em última instância" do filósofo Louis Althusser, para evitar que caíssemos num determinismo mecanicista e fácil. Em seguida, vamos tentar compreender outras formas e manifestações da presença da liberdade, que se deu também de forma proeminente através de outras esferas de influência. A liberdade se introduzia de outra forma, se apresentava por outro viés, que chamaria de terceira esfera, ou esfera "mais" filosófica, através das suas manifestações poéticas, literárias e filosóficas, ainda ideológicas por um lado, mas sendo agora, sobretudo morais e éticas, como, por exemplo, a questão dos valores. Para iniciar a terceira parte ou esfera, todos sabem a força que teve a expressão cultural da "beat generation' nos EUA, com Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Bourroughs e muitos outros, como foi o caso do psicólogo e professor Timothy Leary, que não era propriamente dito um "beat", mas que acabou fazendo parte do movimento de libertação da época, com a pregação favorável às experiências com LSD na universidade de Harvard, onde procurava levar os seus alunos e adeptos do movimento, a alcançar estados alterados de consciência, buscando ampliar a compreensão, autoconhecimento e libertação da massacrante luta diária pela sobrevivência de uma sociedade de consumo de massa. Nunca é demais repetir como esse grupo de poetas, escritores, ensaístas e artistas em geral influíram fortemente no movimento hippie dos sessenta. A estratégica fórmula do “turn in” & “drop out”, ou seja, primeiro se liga e depois cai fora. O que significa literalmente escapar do sistema social padrão, através de uma ruptura radical com algo que não interessa mais, que se rejeita de forma total e absoluta. E assim, mais uma vez tem-se a liberdade na linha do horizonte. E por último, não se pode tratar da questão de demanda por mais liberdade sem falar em Sartre e Camus, que na França do pós-guerra faziam parte da grande agitação crítica e filosófica em prol da liberdade, que vai desaguar no existencialismo francês. Existencialismo, que não se reduzia apenas a uma filosofia filosofada e teórica, mas também uma concepção de vida e de mundo, que se constituía num movimento cultural, que envolvia além da filosofia propriamente dita, também moda, a música com Juliette Gréco e o Jazz feito em Paris na época, a cena teatral e cinematográfica, com o teatro “National Populaire” e a “nouvelle vague”, o cahier du cinema, além da literatura do "nouveau Roman", etc. Para a geração de hoje, é muito difícil imaginar a força da presença filosófica dessa cultura, principalmente de Jean Paul Sartre no Brasil daquela época. Por essas bandas só se falava em existencialismo, mesmo para quem não entendia nada do assunto e do seu significado. Mas tal era a importância dada à questão do existencialismo, que quase todo mundo repetia, e era um verdadeiro turbilhão na opinião pública. Vivia-se sob o signo da liberdade sartriana, de que todo mundo é livre mesmo atrás das grades, quem não se lembra dessa máxima? Portanto, para concluir, e por tudo o que foi mostrado até aqui, não se tinha mesmo como escapar da forte influência da demanda por mais liberdade, como algo que se impunha à vontade, e por diferentes esferas e dimensões, fossem elas políticas, econômicas, ideológicas, científicas ou filosóficas. Por essa razão, nunca é demais repetir, como isso se dá ou se deu no caso brasileiro. Vimos que a questão da liberdade se impõe como necessidade, quando a sua ausência atinge a todos, pela força do autoritarismo e da violência coercitiva, através de uma ditadura política. Vimos, por outro lado, quando essa demanda por liberdade, emerge através de grupos segregados da sociedade, que lutam por mais direitos civis através de ações afirmativas, pela ampliação do espaço já conquistado e da própria luta política e efetiva, que acaba se estendendo e atingindo outros segmentos da sociedade. Vimos também, quando toda a demanda por ampliação de liberdade chega à esfera das idéias e atinge os intelectuais, trazendo para a arena de luta ideológica, artistas, literatos e filósofos. Constituindo-se naquilo, que se costuma chamar de luta de classes na teoria. E com esse resumo final, damos por concluído o presente painel da questão da liberdade e do seu efeito entre nós no período apontado, embora reconheça, que tal como o amor, essa é uma questão para a vida toda.

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